AUTOBIOGRAFIA

AUTO BIOGRAFIA COMO INSTRUMENTO DE AJUDA NO AUTO CONHECIMENTO. P. Deolino Pedro Baldissera, sds INTRODUÇÃO Todos nós sabemos da importância da psicogênese para entender a história pessoal e um grande número de nossos comportamentos. Nossas vivências moldam nosso modo de ser, nossa personalidade. Guardamos dentro de nós, em nossas memórias, não a realidade tal e qual ela é, mas sim as interpretações que fizemos ou fazemos dela. Cada um de nós vê o mundo que nossos olhos, nossa mente, nosso coração, nossas emoções pintam. É difícil captar toda a realidade como ela se apresenta, sempre há detalhes que fogem à nossa percepção, e há aqueles que percebemos de forma distorcida. Nosso mundo interior está marcado por aquilo que vivemos, segundo o modo como o vivemos. Já dizia SantoTomás “quid quid recipitur ad modum recipienti recipitur”. (Aquilo que se recebe, recebe-se segundo o modo do recipiente). Nossa interação com o ambiente constrói nossas relações que se transformam em atitudes que moldam nossos comportamentos. Proponho para nossa reflexão alguns aspectos que podem ser úteis em nossa discussão sobre o processo de formação inicial (e permanente). Minha contribuição quer ser na linha da composição de uma autobiografia como instrumento de ajuda para o formando no sentido de ampliar seu auto conhecimento. Proponho seis passos para a elaboração da mesma. 1) Situar-se no mundo no dia que nascimento; 2) tomar conhecimento de que tem uma história para contar; 3) perceber que a história pessoal foi marcada por fatos significativos com pesos emocionais diferentes; 4) Dai a necessidade rever a própria história (reinterpretá-las em novas bases); 5) tomar consciência da própria história vocacional (história de fé); 6) projetar a história futura (própria vida para o futuro). 1. COMO ERA O MUNDO NO DIA DO NASCIMENTO. (SITUAR-SE NO MUNDO NO DIA EM QUE NASCEU) Dificilmente alguém de nós parou para pesquisar sobre como era o mundo no dia em que nascemos! Contudo, desde o dia de nosso nascimento, para não falar de antes, nós começamos nossa história marcados pelo que encontramos ao nosso redor. Vejamos: ao nascer, fomos inseridos numa história que já existia antes de nós com a qual começamos a interagir. Sofremos sua influência como também começamos a influenciá-la. Nossa interação se deu de várias maneiras. A título de exemplo, começamos a mudar a estatística, um número a mais! um número a mais dentro de casa, um número a mais no cartório, na igreja, na sala de aula, na lista do que iam tomar vacina. as não fomos apenas um número que mexeu com a estatística, fomos um rosto que atraiu atenções, preocupações. Mexemos com o emocional da família, dos vizinhos. Mexemos com as finanças, com os espaços da casa. Fomos um grito que passou a ser ouvido, uma presença que exigiu cuidados. Foi um começo de uma história que veio selada com alguns aspectos de origem hereditária que se enriqueceram ou empobreceram com experiências que o mundo de fora foi propiciando. Muitos foram os fatos, as pessoas, coisas, que delinearam nosso caminho. As experiências emocionais por certo, estão entre as mais significativas. Nos primeiros anos de vida, como reagimos diante dos estímulos que recebemos? como percebemos a realidade que nos cercava? como vivemos os fatos e acontecimentos de nosso dia-a-dia? como os guardamos dentro de nós? Nossas estruturas psíquicas ainda por se desenvolverem, foram sendo moldadas, nos primeiros anos, com matizes multicoloridas, sobretudo pelas vivências que tivemos em nosso cotidiano, marcados pelas figuras significativas que povoaram nosso ambiente ou tomaram conta de nós. O mundo do qual passamos a fazer parte, deixou sua influência pelo jeito de ser da mãe, do pai, da babá, da tia, da avó. Das condições econômicas da família, do calor ou do frio que a estação do ano gerou. Do ar puro ou poluído do lugar onde vivemos. Da cultura predominante em nosso ambiente, dos costumes etc. Situar-se no mundo, no dia em que nascemos, significa entrar em contato, também com o mundo de forma global. Não foi só o mundo pertinho de nós que marcou nossa história, também os acontecimentos mundiais tiveram seu peso. Por exemplo, quem nasceu no dia 11 de setembro de 2002 nos arredores das torres gêmeas em Nova York, e quem nasceu em Bagdad, estão marcados por modos diferentes. Os primeiros por estarem em território americano foram vistos como vítimas de atos terroristas, os segundos marcados por atos de guerra tempos depois, como justificativa preventiva contra tais atos. Crianças que nasceram em Nova York, quando crescerem talvez dirão, Buch fez bem em nos defender contra o inimigo que morava em Bagdag. Os pais que viram seus filhos morrerem nos ataques contra os terroristas dirão, Buch é um assassino de inocentes. As crianças que têm o mesmo dia em comum na certidão de nascimento, têm suas histórias marcadas de maneira diferentes. Hoje, na era da globalização, aquilo que acontece em qualquer lugar do planeta repercute sobre quem mora nele mesmo que em pontos geográficos diferentes. E assim nossa história pessoal tem a ver com o mundo que encontramos quando nascemos. Construir uma autobiografia, iniciando por uma pesquisa sobre como era o mundo no dia do nascimento, permite não só situar-se no tempo e no espaço mas conhecer o tipo de “olho” que vai ser usado para enxergar as principais coisas da vida. 2. TOMAR CONSCIÊNCIA DA PRÓPRIA HISTÓRIA Para conhecer a história pessoal não basta uma ficha técnica que diga a data de nascimento, o lugar onde nasceu, qual a filiação, endereço, RG e CPF. Na medida em que os anos vão se passando vamos escrevendo nossa história pessoal. Cada um tem a sua, não importa se mais rica ou mais pobre. Cada um tem uma história para contar! Ela é única. É a sua história que não tem mais jeito de negar. Bem ou mal cada um a viveu até o seu momento presente. Tomar consciência dela permite percorrê-la observando o que aconteceu e como aconteceram os fatos que fazem parte dela e também de seu lugar e seu papel no mundo. No caminho percorrido encontramos memórias de fatos, acontecimentos, experiências que foram se juntando e compondo os capítulos de cada ano vivido. Fatos, pensamentos, emoções, fantasias, se misturaram e teceram tramas em nossos neurônios. Nossas lembranças e esquecimentos foram compondo o vasto campo de nossa memória consciente e inconsciente. Elas fazem parte do que somos hoje. Podemos lembrar conquistas, fracassos. Conhecemos pessoas, estabelecemos relações, descobrimos alguns dons, desenvolvemos habilidades, assimilamos culturas, povoamos nossa mente de símbolos, navegamos por imaginações, criamos fantasias, experimentamos prazeres e sofrimentos. Guardamos segredos, temos memórias afetivas que desconhecemos sua origem, Nosso inconsciente é ao mesmo tempo reservas de energias, como também é guarda de tudo o que aconteceu conosco. Quem de nós não lembra dos alguns amigos de infância e esquecimento de outros, das primeiras aventuras fora de casa, das alegrias e decepções. Dos medos de fantasma e dos sonhos de onipotência. Do mundo da magia, onde bastava pensar e os desejos e as coisas pareciam se transformar como reais, mesmo que reais não fossem. Percorrer a história vivida é ir tomando posse daquilo que já nos pertence, trazendo à tona aquilo que já estava esquecido. Todos temos experiências que enobrecem e outras que entristecem. Todos temos coragem e medos escondidos, galanteios à vida e ameaças de morte. Nós temos uma história para contar. Tomar consciência dela, dos aspectos acessíveis e aceitá-los como própria, parece ser um fator de integração. Muitos jovens formandos não só ignoram sua própria história como na maioria dos casos, não percebem muitos condicionamentos que trazem e ditam seus comportamentos hoje. Orientá-los a escrever sua história é uma ajuda que se pode dar para depois aprofundá-la naqueles aspectos mais inconscientes que interferem na qualidade de suas relações consigo, com os outros, com o mundo e com Deus. Como diz o ditado: quem não conhece a própria história está condenado a repeti-la. 3. CONSTATAR OS MOMENTOS SIGNIFICATIVOS DA PRÓPRIA HISTÓRIA Não basta ter consciência de que se tem uma história. Para penetrá-la mais profundamente é necessário decodificar ou interpretar muitos símbolos que se firmaram dentro de nós e que são expressões de experiências vividas. Nossa história nos marcou! Ninguém passa indiferente pela vida. Há coisas vividas que foram alicerces sobre os quais firmamos nossos passos, há também “problemas mal resolvidos” que balançam os fundamentos e por vezes comprometem o bem estar e o equilíbrio psíquico. Muitas pessoas foram vitimas de traumas que feriram seu eu, às vezes, de modo irreparável, causando sofrimentos que são carregados pela vida afora. Há também aqueles que não sofreram traumas, mas possuem suas dores emocionais cristalizadas como “estalagmites”, isto é, pequenas coisas (humilhações, reprovações, culpabilizações etc) que foram se sedimentando ao longo de muitos anos até se tornarem feridas da alma. Estas são mais difíceis porque suas causas são menos evidente e de difícil detectação, contudo não menos cruéis na escravização do sujeito. Constatar as feridas do eu é portanto, um modo de possibilitar sua cura. Contudo, a verdade de nosso ser mais profundo parece ser bem mais exigente e complexa. “toda pessoa resiste, em maior ou menor medida, a reconhecer certos aspectos de seu ser, desde o físico até o psicológico e moral. Talvez porque são aspectos que não combinam com a imagem que tem de si ou com as expectativas das pessoas mais significativas, ou simplesmente porque são consideradas como debilidades, limitações, defeitos. Há pessoas para as quais se encolerizar equivale a uma declaração de derrota, seja moral ou psíquica; para outras é certo o contrário: se não gritam, sentem-se um dom ninguém” Apesar das dificuldades, esse processo de conhecer as experiências mais significativas, parece indispensável para alguém que deseja viver com mais liberdade suas escolhas pessoais e/ou vocacionais. Nesse aspecto creio que o papel do psicólogo pode prestar grande ajuda. Ajudar na remoção dos entraves que dificultam o contato mais profundo com o eu ferido (escondido). 4. REVER A PRÓPRIA HISTÓRIA Constatar o que marcou negativamente a vida não basta. É relativamente fácil falar de idéias, de fatos e acontecimentos externos, a experiência nos mostra o quanto é complicado penetrar nas experiências sobretudo naquelas que causaram sofrimentos emocionais relevantes. Falar delas com simplicidade e liberdade é um grande desafio. Entretanto, quem não se possui como sujeito, dificilmente pode dar-se aos outros com liberdade e gratuidade. Por isso é preciso rever. Rever a história trata-se aqui de aceitar em primeiro lugar que ela existiu e do jeito que existiu. Se constatar que há algo que foi mal assimilado, porque mal interpretado, precisa-se rever os fatos e reinterpretá-los sob outra ótica, outra luz. Há pessoas cuja história foi marcada, como já dissemos acima, por traumas que lesaram seu direito de viver mais livremente. Agora eles aí estão, perturbando e molestando a vida, tornando-a, às vezes, rude, agressiva, auto destrutiva, doente. É preciso desenterrar esses males e olhá-los com outros olhos, reinterpretá-los, retirar aqueles nódulos em que ficou o sofrimento. Revê-los necessariamente provoca nova dor, mas sem ela seria improvável sua cura. Ter coragem de entrar em contato com o sofrimento emocional exige uma certa obstinação, habilidade, coragem e humildade. Frequentemente se precisa da ajuda de alguém. Ajudar o formando a curar seus traumas ou reverter suas estalagmites, eis mais um campo de atuação do psicólogo que atende formandos. Ajudar alguém a rever seus traumas ou estalagmites, requer também competência, técnica e paciência. 5. CONSCIÊNCIA DA HISTÓRIA VOCACIONAL Para o formando é importante que ele tenha consciência de sua história vocacional, ela está relacionada com sua história de fé. Conhecer seu sistema de crenças (valores) suas motivações profundas, suas experiências de fé (de Deus) são elementos essências para o processo de discernimento. Desvelar as motivações conscientes e inconscientes é uma exigência para sustentar uma vocação. Não bastará refletir sobre as razões conscientes que possam sustentar uma vocação é preciso também conhecer e muitas vezes modificar as “razões” inconscientes e desenvolver uma base sólida centrada em valores transcendentes convictamente internalizados para garantir a perseverança e eficácia vocacional. Tomar consciência da história vocacional é portanto, outro elemento fundamental para quem deseja seguir a vocação para a vida consagrada ou sacerdotal. A base espiritual que mantém a vocação deve esta unida a uma estrutura psíquica sadia e amadurecida. 6. PROJETAR O PRÓPRIO FUTURO. A vida não pode parar onde estamos, e para continuar com sentido ela precisa ser projetada para o futuro. Para isso é necessário ter ambições, sonhos a conquistar. Não basta capacitar-se para ser um bom profissional, embora isso também seja necessário. Mais do que se tornar um profissional é preciso fortalecer-se vocacionalmente. Para isso não se pode descuidar daquilo que lhe dá sustento. Ou seja, os valores finalísticos e valores mediadores originários de uma fé esclarecida, que deverão fazer parte do sistema motivacional bem como uma sólida estrutura psíquica e uma maturidade afetiva. Estes são alguns elementos para garantir com alguma segurança uma vocação. Também aqui o psicólogo pode oferecer uma ajuda importante, seja na linha de facilitar a compreensão das diferentes dimensões, como também de ajudar a perceber as interações que ocorrem ou melhor dizendo, onde estão as consistências e inconsistências entre os fatores emocionais e os valores vocacionais. Como diz o poeta “sonhar é preciso”. CONCLUSÃO: Escrever uma autobiografia, certamente que não é a solução para todos os problemas da vida, vejo-a mais como uma facilitadora para uma compreensão maior de si próprio, uma “leitura” mais organizada de como viveu e possibilidade de continuar escrevendo-a com novas luzes. Certamente não é tarefa fácil e mesmo impossível ter pleno conhecimento dos seus meandros. Como dizia Carlos Drumond de Andrade no poema “O outro”: como decifrar pictogramas de dez mil anos atrás se nem sei decifrar minha escrita interior (...) a verdade essencial é um desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco... Isso que poeticamente diz Drumond corresponde em parte aquilo que também faz parte de nossa crença, naquilo que temos e somos mistério. Contudo, não deixa de ser útil aprofundar sempre mais a história pessoal para que a vida transpareça com mais vitalidade e se aproxime daquilo que ela é em cada sujeito humano.

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